domingo, 12 de julho de 2015

Deixem minha calvície em paz: sobre opressão estética e financiamento de pesquisas


                                                                                                            Por Hugo Sousa da Fonseca


Zymo HSOR, Minoxidil, Finasterida, 17 Alfa Estradiol, Fitoterápicos, Vitaminas e minerais, Xampu de Cetoconazol, Gel FF, Revivogen, Auxina, L-Carnitina. Junto às inúmeras simpatias mais empíricas, eis o rol de indicações que nós calvos sempre recebemos das pessoas. Já reparou que todo mundo tem uma saída infalível pra esse monstro que é ficar careca? Na maioria das vezes nem perguntamos nada, mas todo mundo sempre se acha responsável por não só apontar sarcasticamente uma queda de cabelo evidente, mas também por indicar algum medicamento para que ela pelo menos esteja amenizada.
Comecei a apresentar esses temerosos sintomas aos 17 anos e por isso já ouvi muita coisa desse tipo. Passei por alguns médicos, rezas das mais fiéis e uma coisa me chocava: as inconvenientes pessoas que me abordavam estavam sempre mais preocupadas com esse “problema” do que eu mesmo. Aliado a isso, um bombardeamento de campanhas publicitárias me deixava numa saia-justa enorme, tentando me fazer crer que havia algo de muito errado comigo.
Iniciei alguns tratamentos e nunca entendi a real necessidade de ingerir aqueles remédios que até os médicos afirmam: não vão resolver porra nenhuma. Talvez algumas piadinhas e comentários ofensivos me fizessem naturalizar minimamente aquela rotina, pois a resposta mais óbvia à zoação é a tentativa de sair da condição de pessoa calva. Mas o fato é que nunca refleti seriamente sobre a necessidade de tamanhos gastos em uma droga que deveria me fazer alguém melhor(?). Eu pulava alguns dias, me esquecia de tomar o bendito remédio, até tentava cotidianizar aquela preocupação, mas às vezes eu fracassava.
Mais uma vez, a sensação era de que havia algo de muito errado comigo porque ao meu redor o medo da calvície era sempre um assunto pautadíssimo. Assim, por mais que eu resistisse, esse medo também me molda(va). Enquanto escrevia esse texto, numa folga entre uma frase e outra, meu facebook sugere um produto através da seguinte manchete: Produto que Fortalece o Cabelo e Acelera o Crescimento em 350% Chega Ao Brasil¹. No anúncio, a seguinte introdução: “Apesar do dizer “é dos carecas que elas gostam mais”, uma pesquisa na inglaterra confirmou que 76% das mulheres entre 25 e 40 anos preferem um homem com cabelo à um careca.”  Sem aprofundar na problematização da forma cis-sexista e heteronormativa com que a propaganda trata atração sexual e amorosa, é risível uma pesquisa com resultados tão óbvios. A ideia é forçar a venda de um produto, colocando alguns números para dar alguma credibilidade.
A queda de cabelo é vendida como uma situação que te deixa mais feio, menos charmoso, menos atraente e toda essa lavagem cerebral acaba estruturando a forma como lidamos com o nosso próprio corpo. É torturante ver fotos expostas com tamanho sensacionalismo, que colocam sempre um Brad Pitt em oposição a um calvo, naquele formato Antes e Depois. Os remédios cumpririam a função de inclusão no padrão de beleza. A gente se sente mal e, obviamente, esses 76% de mulheres que “preferem” homens com cabelos também passam pelo mesmo processo simbólico.
É importante observar que há muito tempo a militância dos diversos movimentos negros organizados problematiza a relação entre cabelo e identificação com o próprio corpo. A opressão pelos cabelos no caso da negritude se dá num nível maior de complexidade, é reflexo de uma opressão estruturante da nossa sociedade, mas podemos aprender com algumas reflexões já feitas pra tentar entender como se dá o processo de auto-estima de corpos que desviam do padrão esteticamente aceito pela sociedade. Minha intenção não é fazer uma crítica simplista às pessoas que fazem tratamento para calvície porque não lidam bem com ela. Eu sei como é foda! Um último texto² que vi no Blogueiras Negras trazia um parágrafo que traduz o que eu quero dizer:
Eu concordo e defendo a bandeira de que o corpo é seu e de que você tem o direito de fazer o que quiser com ele, mas, por favor, reflita antes de tudo: O que você tem feito é por que você quer? Se você quer, o que te motiva a isso? Se no final, a resposta te levar a um padrão de opressão, tá tudo errado. Acredito que o mesmo vale pra quem tem o cabelo liso ou encaracolado e quer a todo custo “baixar” o volume. Quem foi que te disse que o volume precisa ser baixo? O alto é muito mais divertido. Não acredite que você precisa recorrer a produtos esdrúxulos periodicamente pra ter um cabelo legal. O padrão racista adotado na indústria cosmética não quer que você resista ou perceba o quanto ela oprime a nossa identidade.
Esse é o ponto: enquanto nos mutilamos, não apenas fisicamente, a indústria cosmética vai se beneficiando; enquanto a imagem do cabelo afro é destruída a $alvação do alisamento vem por um preço bem caro. É impressionante o espaço que pesquisas de alisamento, de combate à calvície e também de emagrecimento têm hoje não apenas na publicidade, mas no próprio processo de fomento a pesquisas. Parece meio clichê de esquerda dizer, mas não há como não observar: a ciência de hoje tem violentado corpos, porque está envolvida exclusivamente com as demandas do mercado. Não foi nenhum comunista que alertou recentemente, foi Bill Gates: o capitalismo significa que há muito mais pesquisa sobre a calvície masculina do que em doenças como malária, que afetam majoritariamente as pessoas mais pobres. Ele ainda acrescenta:  “A vacina contra a malária é a maior necessidade. Mas quase não tem financiamento. Mas se você está trabalhando com a calvície masculina ou outras coisas você pode conseguir mais recursos para pesquisa por causa da voz que tem no mercado, mais que algo como a malária”.
Nesse sentido, é urgente que questionemos a que(m) tem servido esse ~conhecimento~ produzido nos laboratórios. Nas Universidades, essa lógica de mercado ainda exerce influência absurda frente às/aos pesquisadoras/es, secundarizando inúmeros experimentos comprometidos com problemas concretos da sociedade. Públicas ou privadas as Universidades devem estimular processos de mudança social e se referenciar na realidade a cada página escrita ou conta feita.
A educação no Brasil é uma história de privilégios, de manutenção de interesses dominantes: é hora de fazer diferente. A ciência tem responsabilidade social e por isso não é aceitável que as necessidades humanas sejam moeda de troca, instrumento de lucro. É bandeira histórica do Movimento Estudantil a reivindicação por financiamento público de pesquisa nas Universidades, como forma de superação dessa ingerência do mercado na produção acadêmica. Esse grito discente por liberdade na academia representa uma concepção mais ampla de projeto de sociedade, mas também visa combater opressões diárias que acontecem. Priorizar o mercado é inviabilizar que o ~progresso~ da ciência signifique um avanço pras as PESSOAS. Financiar o tratamento da calvície é um efeito simbólico violento sobre os calvos, mas também é uma resposta omissa frente as pessoas que estão morrendo por doenças pouco pesquisadas/lucrativas.
A ciência mercantilizada de hoje em dia me vê como alguém que merece muita atenção – preocupação que parece se estender às pessoas como um todo – e com esse texto eu quero dizer: deixem minha calvície em paz, porque não sou obrigado a consumir algo só porque vocês julgam ser importante pra mim. Eu estou bem, mas muita gente não está! Se falar em ciência é estudar a vida, por que não nos preocupamos com quem está morrendo?


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Beijões Queen Size,

Claudia Rocha GorDivah

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