segunda-feira, 28 de outubro de 2019

“A empresa em que trabalhava me demitiu por eu ser negra e gorda”

Técnica em nutrição, Fernanda Franco, de 40 anos, foi demitida do “trabalho dos sonhos” com a justificativa de que sua aparência, "negra e gorda", não agradava os "frequentadores do restaurante". Desempregada e com a mãe doente, ela recebeu apoio de amigos para comer e comprar medicamentos, até dar a volta por cima e abrir seu próprio restaurante em São Carlos, interior de São Paulo

A técnica em nutrição Fernanda Franco, que foi demitida com a justificativa de que ela era "negra e gorda" (Foto: arquivo pessoal)

“Sou a segunda de três filhos de um pedreiro e uma cozinheira. Tive uma infância humilde, nada fácil, mas muito feliz. Minha mãe, Dona Biga, se casou bem cedo e logo vieram os filhos. Quando éramos pequenos, ela nos deixava na creche às 7h, onde ficavámos até as 17h. Nessa creche, as mães tinham como uma das obrigações dedicar um dia do mês de serviço ao local para ‘pagar’ nossa estadia. Numa ocasião, durante uma feijoada beneficente, minha mãe resolveu colocar em prática seus dotes culinários e conquistou a todos, pois ela sempre cozinhou muito bem. Alguns dias depois, ela recebeu um convite para trabalhar na creche, cozinhando para quase 300 crianças, que passaram a considerá-la como mãe. Isso foi no final de 1985.

Cresci acompanhando minha mãe brilhar na cozinha e, assim, me apaixonei pela culinária também. Ia à escola de manhã e, à tarde, dava um jeito de fugir para ajudar minha mãe. Assim, aos 6 anos, decidi que queria fazer aquilo por toda minha vida.
Em 1986, a instituição onde minha mãe trabalhava abriu uma cozinha ainda maior, que fornecia alimentação para outros lugares. A produção era enorme e, nesse espaço, eu já não tinha tanto acesso, mas fazia visitas para espiar e admirar minha mãe liderando uma grande equipe de cozinheiros. Foi a primeira vez que vi uma nutricionista em ação, o que me encantou. Permaneci ali até os 18 anos: trabalhei no berçário, no escritório e, claro, na cozinha, com minha mãe, e decidi que meu destino era ser técnica em nutrição, sonho que realizei em 2008, após dois anos de intensos estudos.

Alguns anos antes, em 2001, vivi uma situação que mudou minha vida completamente. Ao perder meu pai, fiquei muito mal: quis morrer, tive depressão e desenvolvi transtornos alimentares. De 80 fui para 160 quilos rapidamente.
Conto isso porque, no final de 2018, uma amiga me indicou a uma vaga numa empresa que gerencia vários restaurantes. Era uma proposta irrecusável, primeiramente, pelo salário,  ótimo, e também pelo grande número de funcionários que o restaurante atende, um desafio que iria acrescentar muito ao meu currículo. Parecia o ‘emprego dos sonhos’.

Nessa época, tinha parado a faculdade de nutrição por falta de grana e vi nessa oportunidade a chance de voltar e dar continuidade a minha formação. A supervisora da empresa pediu meu currículo e me chamou para uma conversa, que acabou se transformou em entrevista e, por fim, fui contratada. Foi tudo muito rápido: em menos de duas horas fui aprovada. Fiquei muito feliz.

Comecei a trabalhar e me dediquei muito. Passei pela fase da experiência com mérito e tudo parecia estar bem. Trabalhei lá por um ano e meio, de segunda a sábado e, junto à nutricionista, cuidava da administração da unidade de alimentação do restaurante, do controle de qualidade e das rotinas administrativas, além da elaboração de cardápios, realização de eventos e atendimento ao público. Fui muito feliz e aprendi demais, até ser demitida, em março de 2019, de um modo que me chocou bastante. As palavras mais duras que ouvi na minha vida vieram por e-mail: ‘Boa tarde! Peço para que desligue a técnica em nutrição Fernanda Franco por ela não agradar fisicamente aos usuários do nosso restaurante. Peço que a substituição seja feita por alguém que tenha as características físicas, peso e cor diferentes da colaboradora’. Todos os preconceitos estavam reunidos numa única mensagem.


Meu mundo caiu. Chorei horrores. Para completar, no mesmo dia, minha mãe foi internada com uma meningite grave. No hospital, não tive coragem de contar que acabara de ser demitida e o motivo. Minha mãe ficou 37 dias internada. Gastei todo o dinheiro da minha rescisão em sua recuperação e, quando ela teve alta, me vi de volta a 1984, quando passávamos fome, mas agora não tinha mais meu pai e precisava dar conta de tudo sozinha, agora com minha mãe doente.

Fiquei tão chocada com o motivo da demissão que nem quis mais falar a respeito com ninguém da empresa. Voltei lá só para assinar minha demissão, na recepção, sem precisar encontrar ninguém. Foi um alívio. Sendo uma mulher negra, pobre, obesa, já vivi muitos preconceitos, mas, como esse, nunca.



Para ajudar minha mãe, passei a fazer bico como cuidadora de idosos. Tivemos apoio de amigos maravilhosos, que nos ajudaram com alimentos e remédios. Uma amiga me encorajou a abrir meu próprio espaço e eu, como a fênix que sempre fui, meses depois, inaugurei meu restaurante. É ainda bem simples e pequenino. Servimos comida caseira e também ‘marmitex’, mas tudo é feito com muito amor. Coloquei o nome da minha mãe, D. Biga Cozinha e Chopp, em homenagem a mulher que me ensinou tudo sobre cozinha, dedicação e amor! Continuo fazendo bolos e pães, que são um verdadeiro sucesso. Aos poucos, estou conquistando minha clientela, que adora meu tempero e meus quitutes.



Minha irmã mais nova, Débora, trabalha comigo. Espero nunca mais trabalhar para ninguém e nunca mais viver tamanha humilhação. Vou lutar pelo que acredito e mostrar que posso ser uma nutricionista negra e gorda, sem ter de dar satisfações para essa sociedade hipócrita."


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