Depoimentos revelam que a gordofobia pode estar intimamente associada à misoginia e se torna a principal motivação por trás de outros tipos de violência contra mulheres
Por Jarid Arraes
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A gordofobia é apontada por ativistas como um tipo de discriminação que acontece devido à intolerância da sociedade por pessoas gordas. Muitas vezes naturalizada nas ideias e comportamentos cotidianos, ela se embasa em diversos preconceitos que associam pessoas gordas a características e termos depreciativos.
É comum que pessoas gordas sofram constrangimentos públicos. Quando estão comendo, muitas recebem comentários invasivos e de desaprovação, como se não pudessem e não devessem se alimentar. Além disso, acabam enfrentando dificuldades no que diz respeito à acessibilidade, já que a maioria dos assentos e ambientes não é pensado para elas. Na prática, desde a cultura das dietas irresponsáveis até o padrão magro de beleza, tudo se reflete em situações palpáveis que realmente prejudicam a vida de quem é gordo.
No entanto, as dificuldades enfrentadas não se limitam aos tamanhos pequenos das roupas ou cadeiras frágeis dos estabelecimentos. Em muitos casos, a gordofobia está intimamente associada à misoginia e se torna a principal motivação por trás de outros tipos de violência contra mulheres. A estudante universitária Nathália Vargas*, de 24 anos, conta que sofreu muitos tipos de violência por ser gorda. “Cresci ouvindo piadinhas, recebendo apelidos, essas coisas que todo mundo que sempre foi gordo sabe bem como é, mas a pior agressão que sofri foi um estupro”, conta.
Vargas relata que estava participando de uma comemoração da faculdade com seus amigos, se sentindo feliz enquanto dançava a noite inteira, quando chegou a hora de ir embora. Ela esperava um táxi que havia chamado pelo celular quando um colega parou o carro e ofereceu uma carona.
“Conhecia aquele cara há pelo menos dois anos, sempre nos falávamos na faculdade”, explica. “Mas ele parou o carro em um lugar escuro e deserto, travou as portas e disse que eu precisava mudar minhas atitudes, que precisava emagrecer ou parar de ‘balançar as minhas banhas’ na frente das pessoas”. Vargas ainda salienta que ele não estava bêbado e parecia muito calmo, mas não gostou da reação que a estudante teve. “Quando eu disse que ele era um idiota por me falar aquelas coisas, ele me deu um murro no nariz e falou que ia me ‘foder’ porque eu era gorda e nojenta. Ele me estuprou porque eu sou gorda”, diz Vargas abalada.
O que aconteceu nos dias após o estupro também é considerado por Nathália Vargas como reflexo da gordofobia que o colega manifestou. “Contei para outras amigas e todas duvidaram do que aconteceu. Chegaram a me falar que ele só estava afim de mim e tinha vergonha de assumir. Transferi o curso de faculdade, porque não poderia conviver com pessoas que chamaram o estupro que sofri de interesse romântico reprimido”, protesta.
Muitas outras mulheres passam por experiências similares; seus depoimentos deixam evidente que a misoginia e a violência sexual não seleciona mulheres socialmente consideradas “atraentes” por serem magras. O estupro é uma forma de subjugar e exercer um poder punitivo contra a mulher – no caso das mulheres gordas, em muitos casos elas são punidas pelo seu peso ou ainda por demonstrarem felicidade, já que nossa cultura considera que quem é gordo não deve estar satisfeito com o próprio corpo.
“Sofro muito assédio pelas ruas”, compartilha a ativista feminista Viviana Lima*. “Não por acaso, nunca deixei de ouvir grosserias e frases pornográficas por ser gorda. No meu caso, sempre que rejeito uma cantada, o homem age de forma gordofóbica”. Na última vez em que foi assediada, Lima caminhava na Avenida Paulista quando ouviu comentários sobre seu corpo. “O homem, que também era gordo, disse que eu era uma delícia, bem alto. Parei e o chamei de nojento, ao que ele reagiu com vários insultos me chamando de orca, leitoa e gorda horrorosa. Disse que estava tentando ajudar minha autoestima, porque eu certamente não recebia elogios”.
Segundo ativistas como Viviane, a violência sofrida por mulheres gordas é constantemente desacreditada ou transformada em algo positivo, já que, para quem faz uso de argumentos gordofóbicos, pelo menos essas mulheres estariam recebendo alguma atenção masculina. “É como se a nossa vida girasse em torno dos homens. Sou uma pessoa feliz e realizada, inclusive sexualmente, não devo gratidão a nenhum machista gordofóbico”, afirma. “Mas isso acontece porque toda a sociedade está contaminada pela ideia de que ser gorda é a pior coisa que pode acontecer a uma mulher.
Quando me dizem que devo ficar feliz quando sofro assédio, o que eu entendo é que as pessoas acham que é melhor ser violentada do que ser gorda. Isso me enoja”, declara.
Nas redes, há diversas páginas e blogues que tratam de problemas como esse, denunciando as diversas formas por quais a gordofobia se manifesta, mas o assunto ainda está muito centralizado na busca por autoestima e autoaceitação. Por isso, os sites que falam de moda e beleza ainda são mais presentes do que aqueles que discorrem sobre violência sexual e doméstica contra mulheres gordas. “Acho que elas [mulheres gordas] ainda sentem medo de quebrar o silêncio. É menos grave falar de beleza e moda do que de estupro”, diz Nathália Vargas. “Eu entendo, até porque é algo muito doloroso, mas esse silêncio tem mantido os agressores numa zona de conforto. A gente precisa dar nome à gordofobia e denunciá-la”, conclui.
Para Viviana Lima, o quadro não será mais positivo tão cedo. “Não vejo como isso pode mudar nos próximos anos, porque mesmo a gente tenta combater gordofobia com mais padrões impostos às gordas. Plus Size com cinturinha e Photoshop? Aquela ideia de ‘gordelícia’, que é a gorda que tem curvas proporcionais, não tem celulite, nem barriga. Como as pessoas têm coragem de dizer que estão combatendo a gordofobia desse jeito?”, questiona. “Enquanto mulheres gordas e que não são modelos Plus Size forem comparadas com gorda de catálogo, a gente não consegue avançar nem um passo para falar de coisas absurdas como o estupro que me castiga por ser ‘gorda demais’”, protesta Lima.
Para a ativista, a saída é fazer uma abordagem cada vez mais politizada, que conquiste espaço nos movimentos de mulheres. “É um desafio, porque mesmo no feminismo temos o racismo e a gordofobia como marcas constantes. Mas eu não desisto. Não posso desistir, porque é a minha vida que está em risco. Se eu não falar por mim, quem falará?”, finaliza com a provocação.
*A pedido das entrevistadas, seus nomes foram trocados.
Foto: Reprodução Facebook
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Beijões Gordos,
Claudia Rocha GorDivah